A virtude do egoísmo
Ayn Rand
Num sentido popular, a palavra "egoísmo" é sinónimo de maldade:
representa a imagem de um insensível e cruel assassino que passa por
cima de pilhas de cadáveres para atingir os seus próprios fins, alguém
que não se importa com qualquer ser humano e que tem como objectivo
último a obtenção de gratificação pessoal com caprichos vãos num
qualquer momento imediato. Todavia, a definição mais exacta da palavra "egoísmo" dada pelo o dicionário é: preocupação com os nossos próprios interesses. Esta definição não encerra uma avaliação moral: não
nos diz se a preocupação com os nossos próprios interesses é algo bom
ou mau; nem nos diz o que de facto constitui os interesses do homem.
Cabe à ética responder a estas questões.
Como resposta, a ética do altruísmo criou a imagem do ser humano
insensível, de forma a levar o homem a crer em dois princípios básicos:
a) que, independentemente da sua natureza dos seus interesses, cuidar
deles é algo mau e b) que a actividade do ser humano insensível é, de
facto, o resultado do seu próprio interesse (ao qual o altruísmo nos
impõe renunciar para o bem daqueles com quem convivemos).
Dando uma perspectiva da natureza do altruísmo, das suas
consequências e da grandeza da corrupção moral a que dá origem, dou o
exemplo do meu livro Atlas Shrugged — ou de qualquer cabeçalho da
imprensa actual. O nosso foco de análise é as deficiências do altruísmo
no domínio da teoria ética. Há duas questões morais que o altruísmo agrupa num único "pacote": 1)
O que são valores? 2) Quem deveria ser o beneficiário dos valores? O
altruísmo substitui a segunda questão pela primeira: escapa à tarefa de
definir um código de valores morais, deixando, assim, o homem sem
qualquer orientação moral.
O altruísmo defende que qualquer acção feita em benefício dos outros é
boa e que qualquer acção feita em prol de interesses próprios é má.
Deste modo, o beneficiário de uma acção é o único critério de
valor moral — e desde que o beneficiário não seja o próprio agente da
acção, tudo é aceitável.
Sob todas as variantes da ética altruísta se pode avaliar a terrível
imoralidade, a injustiça crónica, o grotesco valor dos dois pesos e duas
medidas, os conflitos e contradições insolúveis que caracterizaram as
relações e sociedades humanas ao longo da história.
Observemos a indecência do que se passa hoje com os juízos morais. Um
industrial que faça fortuna e um criminoso que assalte um banco são
igualmente qualificados de imorais, uma vez que ambos procuram riqueza
para o seu próprio benefício "egoísta". Um jovem que desista da carreira
de forma a sustentar os pais e nunca passe de um humilde empregado de
mercearia é visto como moralmente superior àquele outro jovem que
empreende a mais dura das lutas para concretizar a sua ambição pessoal.
Um ditador é considerado moral, dado que as atrocidades indescritíveis
que cometeu tiveram como objectivo beneficiar "o povo" e não a si mesmo.
Observemos agora as implicações deste critério de benefício da
moralidade na vida do homem. A primeira é a conclusão de que a
moralidade é sua inimiga, isto é, ele não tem nada a ganhar com isso, de
facto só tem a perder: pode apenas esperar perda auto-infligida, dor
auto-infligida e a cinzenta e debilitante mortalha da dúvida
incompreensível. Pode apenas esperar que outros ocasionalmente se
sacrifiquem em seu benefício, tal como ele o faz a contra-gosto em
relação a eles. Porém, ele sabe que essa relação trará ressentimento
mútuo e não prazer — e que moralmente a busca de valores pelos dois será
como que uma troca de presentes de Natal indesejados e não escolhidos,
sendo que a que nenhum dois é moralmente permitido comprá-los para si
próprio. Além dos momentos em que revela capacidade para desempenhar um
acto de auto-sacrifício, este homem não possui qualquer significado
moral: a moral não o reconhece e nada diz sobre os momentos cruciais da
sua vida: é apenas a sua própria vida, "egoísta" e privada e como tal
esses momentos são vistos como bons ou maus ou, na melhor das hipóteses,
amorais.
Dado a natureza não atribuir ao homem formas automáticas de
sobrevivência, uma vez que tem de se sustentar através do seu próprio
esforço, a teoria de que a preocupação com os seus próprios interesses é
má significa que o desejo de viver também é mau — que a vida humana,
enquanto tal, é também má. Nenhuma teoria poderia ser mais cruel do que
esta.
No entanto, este é o conceito do altruísmo, implícito na comparação
entre o industrial e o assaltante de bancos. Há uma diferença
fundamental entre um homem que vê a concretização dos seus próprios
interesses na produção ou construção de algo e o outro que os tenta
alcançar através de um assalto. A maldade de um assaltante não reside no
facto de procurar satisfazer os seus interesses, mas no que considera
serem os seus interesses; não no facto de desejar viver, mas no facto de
desejar fazê-lo a um nível sub-humano.
Se é verdade que o meu conceito de "egoísmo" difere do que é
comumente usado, então este é um dos piores erros do altruísmo:
significa isto que o altruísmo não permite qualquer conceito de
auto-respeito e auto-suficiência no homem, ou seja, um homem que se
sustenta pelo seu próprio esforço sem se sacrificar a si mesmo ou aos
outros. Significa também que o altruísmo não consente outra perspectiva
do homem que não seja a de animal sacrificado e beneficiário do
sacrifício dos outros, que não seja a de vítima e de parasita, e
significa que não reconhece a ideia de coexistência benévola entre os
homens nem o conceito de justiça.
Se nos interrogarmos sobre as razões por detrás desta feia mistura de
cinismo e culpa na qual a maioria dos homens constroem as suas vidas,
concluímos que há cinismo porque eles nem praticam nem aceitam a moral
altruísta; há culpa porque não se atrevem a rejeitar essa mesma moral.
Para nos revoltarmos contra tal mal devastador, temos que nos
revoltar contra a sua premissa básica. De forma a redimirmos o homem e a
moral, temos que redimir também o conceito de egoísmo. O primeiro passo para que isso aconteça é o de reiterar o direito do
homem a uma existência moral, isto é, reconhecer a sua necessidade de um
código moral que o guie no decurso e concretização da sua própria vida.
[…] A razão pela qual o homem necessita de um código moral dir-nos-á
que o objectivo da moralidade é o de definir os valores e interesses
próprios do homem, que a preocupação com os seus próprios interesses é a essência de uma existência moral, e que o homem deve ser o beneficiário das suas próprias acções morais.
Dado que todos os valores devem ser conquistados ou mantidos pela
acção do homem, qualquer ruptura ente agente e beneficiário dessa acção
implica uma injustiça: o sacrifício de alguns em benefício de outros,
dos agentes em benefício dos não agentes, do moral ao imoral. Nada
poderia justificar tal ruptura nem alguém jamais o fez.
A escolha do beneficiário dos valores morais é apenas uma questão
preliminar ou introdutória no domínio da moralidade. Não é um substituto
da moralidade nem um critério de valor moral, como o altruísmo defende.
Tão-pouco é um princípio moral fundamental: tem de resultar de e ser
validado por premissas essenciais de um sistema moral.
A ética objectivista defende que o agente tem de ser sempre o
beneficiário da sua acção e que o homem deve agir em função dos seus
próprios interesses racionais. Porém, este direito resulta da sua
natureza de homem e da função dos valores morais na vida humana. Por
isso, é apenas aplicável num contexto de código de valores racional e
objectivamente demonstrado e validado, o qual define e determina o
verdadeiro interesse próprio do homem. Não é uma autorização para fazer
"o que lhe apetece" nem se aplica à visão altruísta do insensível cruel e
"egoísta" nem a qualquer outro homem motivado por emoções irracionais,
sentimentos, vontades súbitas ou caprichos.
Esta ideia é apresentada como um aviso contra o tipo de "egoístas
nietzschianos", que são efectivamente um produto da moral altruísta e
representam o outro lado da moeda altruísta: aqueles que crêem que,
independentemente da sua natureza, qualquer acção é boa se dirigida ao
benefício do próprio agente, tal como a satisfação de desejos
irracionais — quer de si próprio quer de si próprio quer dos outros —
não constitui critério de valor moral. A moralidade não é um concurso de
caprichos.
Ayn Rand
Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira. Extraído de "The Virtue of Selfishness", in Lee G. Bowie et. al (2006) Twenty Questions: An Introduction to Philosophy. 6.a ed. Belmont: Wadsworth, pp. 472-474.
Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira. Extraído de "The Virtue of Selfishness", in Lee G. Bowie et. al (2006) Twenty Questions: An Introduction to Philosophy. 6.a ed. Belmont: Wadsworth, pp. 472-474.
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