O comentário de Rachel Sheherazade sobre a agressão a
um jovem negro levanta debate sobre mídia e direitos humanos e expõe
inúmeras violações cometidas pela mídia. Resta saber o que será feito de
fato!
Por Ana Graziela Aguiar*
As cenas de violência contra um jovem de dezesseis anos, amarrado nu a
um poste, no Rio de Janeiro, chocaram o país. O jovem foi espancado e
estava sendo linchado publicamente, supostamente por ser acusado de
roubo. A imagem já é chocante, mas ganhou cores ainda mais intensas com o
comentário feito pela jornalista Rachel Sheherazade, âncora do
principal telejornal do SBT. Conhecida por seus pronunciamentos
conservadores, Sheherazade classificou o adolescente como
“marginalzinho” e afirmou que a atitude de “vingadores” é compreensível
em um país onde, segundo ela, o Estado é omisso e a justiça falha. Não
satisfeita, a jornalista incitou: “O que resta ao cidadão de bem, que
ainda por cima é desarmado? Se defender, é claro”.
O comentário de Rachel Sheherazade reacendeu a importante
discussão sobre a relação da mídia com os direitos humanos, que percorre
desde a incitação à violência e o desrespeito aos direitos humanos e
chega à discussão sobre a concessão de rádios e TVs no Brasil. Diante
disso, é fundamental recordar que o respeito “à dignidade
da pessoa humana” consta já no primeiro artigo da Constituição Federal.
Ao incitar a violência, convocar o cidadão a ir para as ruas e
“resolver” o que o Estado e a polícia são incapazes de resolver, Rachel
Sheherazade feriu de forma grave a Constituição. E não apenas. Ela
desrespeitou também a proteção à criança e ao adolescente, que é
reafirmada no artigo quinto do Estatuto da Criança e do Adolescente: “
Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,
punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais”. Quando concorda com o linchamento público de um
adolescente suspeito de roubar algo, a jornalista fere também o ECA e
legitima o preconceito e o extermínio sofridos por jovens negros de todo
o país.
Além de leis que regem a atuação de todos nós, cidadão comuns em
nossa vida em sociedade – e aqui se inclui também Sheherazade, há outras
normas que regulam emissoras de rádio e de televisão e que seguem sendo
desrespeitadas com frequência, certamente encorajadas pelo silêncio do
Estado, do governo, do Ministério das Comunicações. Desresponsabilização
que foi utilizada pelo SBT como argumento para se esquivar das inúmeras
críticas à postura expressa no telejornal da emissora. O que não condiz
com a verdade. Por se tratar de um bem público e, portanto, que
deve ser regulamentado pelo Estado, há uma série de leis que organizam o
campo das comunicações e que deveriam ser seguidas. É o caso do decreto
que regulamenta os serviços de radiodifusão (Decreto presidencial
52795/63), que em seu Artigo 28, item 12, inciso b, determina que que as
emissoras devem respeitar obrigações como “ não transmitir programas
que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações
que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu
objetivo seja jornalístico”.
É importante ressaltar que embora a liberdade de radiodifusão seja
algo assegurado pelo Código Brasileiro de Telecomunicações, infrações
podem e devem ser punidas. O Artigo 122 do mesmo Regulamento dos
Serviços de Radiodifusão, em seus item 1, 4 e 5, respectivamente, deixa
claro que incitar a desobediência às leis ou às decisões judiciárias;
fazer propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a
ordem política ou social e promover campanha discriminatória de classe,
cor, raça ou religião são faltas graves, cuja pena pode variar de um a
trinta dias de suspensão para permissionárias e/ou concessionárias dos
serviços de radiodifusão.
Cabe ao Ministério das Comunicações fiscalizar de forma ostensiva
todo o conteúdo veiculado por emissoras de rádio e televisão e fazer com
que o Código Brasileiro de Telecomunicações seja respeitado. Além desse
acompanhamento por parte do Estado, é papel também do cidadão tomar a
comunicação como um direito seu e atuar diretamente na observação e
denúncia de desrespeitos aos direitos humanos observados no sistema de
radiodifusão.
É a partir de um olhar crítico do cidadão que teremos menos “Racheis
Sheherazades” e mais espaço para um jornalismo que cumpra realmente com a
função social de informar e educar. E a resposta à provocação feita
pela jornalista, quando nos convida a “adotar um bandido” deve sempre
ser a de: sim, queremos acolher e proteger um ser humano. E queremos que
a mídia faça o mesmo ou que seja responsabilizada pelo descumprimento
da legislação e de suas funções.
* Ana Graziela Aguiar é jornalista e integrante do Intervozes.